Por
PAULO SÉRGIO PINHEIRO
Publicado no jornal Folha de S.Paulo – TENDÊNCIAS/DEBATES
5 de maio de 2010.
A consagração, pelo STF, da impunidade dos agentes do Estado bandido
faz ainda mais urgente a criação de uma comissão da verdade.
“ACHO QUE a tortura, em certos casos, torna-se necessária para obter
confissões” (frase do general Ernesto Geisel, em depoimento a Maria Celina
D’Araújo e Celso Castro).
Assistir à sessão em que o Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou a
revisão da Lei da Anistia foi entrar em viagem no tempo que levasse ao ano
de 1979 e ali ficássemos imobilizados.
Os ministros estavam angustiados, quase às lágrimas, diante dos supostos
riscos de reverem lei elaborada por regime de exceção e submetida por
ditador militar goela adentro do Congresso Nacional.
Nos votos, preponderou exacerbado anacronismo, o tempo presente, ausente. Ali, não foi levada em conta a evolução da norma internacional, da prática acumulada das democracias e dos Judiciários no mundo em face de crimes cometidos por regimes de exceção e a exigibilidade de sua punição.
Prevaleceu a contrafação histórica da lei nº 6.683/79, como resultado de
um grande “acordo político”, apesar de a conjuntura de 1979 ali descrita
não bater com o que aconteceu.
A Lei da Anistia não foi produto de acordo, pacto, negociação alguma, pois
o projeto não correspondia àquele pelo qual a sociedade civil, o movimento
da anistia, a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e a heroica oposição
parlamentar haviam lutado.
Pouco antes de sua votação, em setembro de 1979 houve o Dia Nacional de
Repúdio ao Projeto de Anistia do governo e, no dia 21 , um grande ato
público na praça da Sé promovido pela OAB-SP, igualmente contra o projeto do governo.
A lei celebrada nos debates do STF como saldo de “negociação” foi aprovada
com 206 votos da Arena, o partido da ditadura, contra 201 do MDB.
A oposição, em peso, votou contra ato de Legislativo emasculado pelas
cassações, infestado por senadores biônicos. Parece que o movimento da
anistia e a oposição na época não tinham sido comunicados de seu papel no
“acordo nacional” que os ministros 30 anos depois lhes atribuiriam.
Foram abundantes nos votos as metáforas de trânsito, como a “dupla via”, a
“ponte” de perdão mútuo e reconciliação que a Lei da Anistia alegadamente
teria significado. Com o argumento prosaico de que a lei nº 6.683 não foi
uma autoanistia porque “bilateral”, pois as vítimas dos criminosos do
Estado foram também beneficiadas .
Como o ditador e o regime de exceção foram tão bonzinhos, contemplando,
além dos torturadores, o “outro lado” – as vítimas-, a Lei de Anistia não
se incluiria nos casos que a Corte Interamericana de Direitos Humanos
condena como autoanistia.
Foi inebriante o coro, com acentos gongóricos, de condenações à tortura.
Pena que o clamor de justiça pela sociedade e pelos familiares dos
desaparecidos, sequestrados, estuprados, torturados e assassinados pelos
agentes da ditadura não tenha sido levado a sério. Por zelo formalista, a
maioria dos ministros jogou pá de cal no exame, pelo Judiciário, desses
crimes.
A execração da tortura soou farisaica, pois consagrou a impunidade dos
torturadores e negou direitos e justiça às vítimas. Houve, igualmente, uma
exaltação do direito à verdade, à completa reconstituição da história da
repressão.
Vai ver, os ministros acreditam que os torturadores, agora impunes, irão
revelar tudo sobre seus crimes.
Revelem ou não, a consagração, pelo STF, da impunidade dos agentes do
Estado bandido faz ainda mais candente e urgente o estabelecimento de uma
comissão da verdade, para que a sociedade, tendo-lhe sido negado o acesso
à justiça, possa ao menos conhecer a verdade. A recusa da revisão da Lei de Anistia, ressalvados dois votos contrários, consagrou de vez o Brasil na rabeira dos países do continente quanto à responsabilização dos agentes do Estado responsáveis por graves violações de direitos humanos.
Diante desse constrangimento, resta provarmos, governo federal,
Legislativo e sociedade, que temos competência para fazer prevalecer a
verdade, mesmo sem a justiça que o Supremo Tribunal Federal negou.
PAULO SÉRGIO PINHEIRO, 66, é professor adjunto de relações internacionais da Brown University (EUA). Foi secretário de Estado de Direitos Humanos no governo Fernando Henrique Cardoso.
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